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Diogo de Haro organiza excursão interestelar à “Arcturus”*

O Rifferama tem o apoio cultural da 30 Por Segundo e Habrok Music

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*por Felipe Maciel-Martínez

Em épocas de constantes incertezas com o presente, sonhar com o futuro torna-se uma tarefa nebulosa. Não é à toa que no período da Guerra Fria intensificou-se a corrida espacial, e agora, em tempos de Guerra Comercial entre as potências tecnológicas, voltamos ao sonho de colonizar Marte e inaugurar rotas turísticas para a Lua e outros locais do vasto domínio espacial.

No início deste ano o selo The Sound Of Space lançou o álbum “Arcturus” do compositor e sintesista catarinense Diogo de Haro. A proposta do selo, que abrange o que os rotuladores de som chamam de música experimental ou eletrônico ambiente, é exatamente a elaboração imaginativa sobre o som do vazio. Questionando as leis da física que dizem que o som não se propaga no vácuo e agrupando artistas que embarcam nesse conceito de sintetizar o espectral inaudível.

De Haro tem sua formação como pianista à moda clássica, porém em sua trajetória observamos um vasto curriculum de pesquisas sobre as dinâmicas e possibilidades sonoras contemporâneas. Combinando o piano acústico aos sintetizadores analógicos, sua expressão artística foi abrangendo influências cunhadas em projetos que vem desde 2013 absorvendo experiências (e experimentos), como um buraco negro de extrema inventividade, que implodem como síntese nas sete músicas que compõe esse novo trabalho.

O próprio compositor coloca que o álbum é um convite ao que ele chama de meditação sinestésica, um conceito que foi desenvolvido a partir das diversas edições da performance Fantascópio (2017-2019). Como a meditação sinestésica seria “um exercício de escuta onde a/o ouvinte se empenha em observar, reter e depois narrar as diversas imagens ou histórias que foram criadas espontaneamente pela mente do sujeito durante a audição da música executada no momento“, venho aqui narrar uma das minhas excursões nas dimensões interestelares das paletas sonoras disponibilizadas por De Haro. Já aviso de antemão que tal imersão de pouco mais de 43 minutos deve ser feita de maneira contínua para obter a melhor experiência do potencial catalisador contido na obra.

    • Um som familiar. Vibram os motores gentilmente, acariciam o cérebro como se tivessem tentando colocar um capacete que já sei de antemão que não servirá mas surpreendentemente tal encaixe, antes impossível, acaba acomodando a cabeça. Alguns brilhos me fazem perceber um monocromático que pisca sem tela, porém à tela. Estou confortável como se estivesse em poltronas como as do CIC. Minha respiração vai modulando até passar a perceber a frequência das cores na ausência delas. Parece que os motores pararam. Por que é tão escuro?
    • Uma tocha que parece distante. Chama espectral que sei que queima, distante demais ainda para tocar. O calor aumenta a cada batida que ecoa na pressão do ar que se rarefaz em revérbero profundo. A luz corta a cada vez que oscila na dinâmica de seu calor. O frio parece não incomodar, mas de alguma maneira temo a morte por estar imerso em tal espaço. Essa tocha briga com o vento, colide em gamas esfumaçadamente circulares. Existe uma melodia que se forma ali, concentro-me nela. Vão surgindo cada vez mais intensas e sumindo mais rápido. Explodiu?

  • Agora vejo melhor. Parece ser uma terra isolada, desolada talvez. Tento mover os braços para brincar com a atmosfera. Não sei se são meus braços que se movem ao ritmo do som ou eles que me movem. De qualquer modo, a oscilação parece orientar a paisagens cada vez mais agradáveis. Algo surge no fundo, fractais de sol que em algum momento escaparam, por sua intensidade, à densidade da cortina. Sinto fractais dessa memória, elas se movem. Percebo um ruído branco chegando de algum lugar. Tem alguma coisa se movendo e passo um longo tempo observando seus movimentos. Reconheço então uma textura crocodylomorpha cortando a atmosfera com gracejos em seus rastejos aéreos. Elevam-se antes que possa temê-los por sua proximidade.
  • As criaturas vão passando por mim e indo para cima. Reconheço-os como jacarés de papo verde-amarelo. O que é curioso, pois anteriormente enxergava as coisas em preto e branco; como em um filme de imagem-muda. Lampejam as duas cores espectralmente em um fluxo modular constante, que vão revelando suas colorizações em um ritmo que parece transformar a carapaça de seu denso negrume. Piscam as cores em melodias; ora grunhem guturais vítreos que fazem a atmosfera tremer em notas agudas, ora harmonizam-se compondo uma espécie de sinfonia natural do ambiente. Nunca tinha imaginado que tais animais seriam tão belos quando livres a ascenderem à altura que quisessem, e, lá de cima, desempenham movimentos que vão se complementando em uma dança de adorável sincronia. Sinto-me sendo elevado também, será que estão me puxando?
  • Devidamente elevado percebo um cenário semelhante a uma miragem. O vazio transforma-se em imagens celestiais. Todas as carestias mnêmicas borbulham enquanto surgem grandiosos rinocerontes alados de plumas tecnicolor. Elas brilham ao bater deixando a atmosfera com seu revigorante ar de leveza. Os jacarés também parecem estar familiarizados com sua peculiar presença. Parecem se comunicarem ao ocuparem o mesmo ambiente edênico.
  • Um rastro de lama cósmica começa jorrar de um buraco no céu. O clima se põe denso. Surgem antas incandescentes urrando frequências que dissolvem o espaço de livre convivência. Elas pairam no ar arrastando algo consigo, não consigo perceber o que é. Seus olhos evidenciam a dor daquelas espécies que morrem em desespero, queimam em ruído abissal, urram essências que fazem juparás-sem-pele saltarem de tal estrutura lamacenta da qual tentam escapar em agonia que vai se intensificando até desaparecerem. Desejo escapar, queimo junto.
  • Algumas faíscas surgem no ar. Luzes voltam a tomar o espaço do ambiente antes tenebroso. Teria encontrado algo antes de perecer naquele magma gélido que havia dominado a paisagem ou adentrado outra dimensão sonora na intensidade da cena anterior? Acaba a música.

Sei que hoje em dia torna-se cada vez mais difícil obtermos tempo para dedicarmo-nos exclusivamente à apreciação musical. A busca por produtividade nas novas modalidades de trabalho impostas nos levam cada vez mais a utilizarmos a música como acessório para outra atividade. Mesmo que o autor mencione que não existe uma regra de como se ouvir “Arcturus”, temos nele uma possibilidade de tentar romper com os vícios diários que regem nosso contato com o som. O compositor também afirma que sua obra não é exatamente a proposta de imersão dos espetáculos audiovisuais contemporâneos que costumam nos envolver compulsoriamente em seus conteúdos.

Se tivesse que definir o projeto sonoro recém comentado teria que cair inevitavelmente no conceito de música de vanguarda. Digo isso porque suas músicas propõem algo além, uma tentativa de inovação nesse campo. O que pode parecer uma leitura meio apressada pela carga histórica que esse termo carrega, fica mais evidente quando levamos em conta todos os ambientes, dentro e fora da Ilha, as performance e improvisos do compositor, com artistas que vão desde Alegre Corrêa e João Tragtenberg até a participações nos concertos da Orquestra Manancial da Alvorada, e toda intencionalidade de desafios propostos ao público, e inclusive à ele mesmo como compositor, dá para concluir que Diogo de Haro quer levar suas raízes musicais sempre à frente da estética já plasmada. Nas sete faixas de Arcturus percebemos que esse avanço proposto cumpre tal tarefa envolvendo o ouvinte em seu estilo de organizar tais paisagens sonoras em uma viagem envolvente.

*Felipe Maciel-Martínez é músico, kinógrafo e cineclubista militante no Instituto de Estudos Latino-Americano e Caribenho (IELA-UFSC).

Daniel Silva é jornalista e editor do portal Rifferama, site criado em 2013 para documentar a produção musical de Santa Catarina. Já atuou na área cultural na administração pública, em assessoria de comunicação para bandas/artistas e festivais, na produção de eventos e cobriu shows nacionais e internacionais como repórter de jornal.

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