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*por Juniores Rodrigues e Tiago Hermano Breunig
Eis que chegamos ao 7º dia… Chegamos?
“Fazer samba não é contar piada”, já disse Vinicius de Moraes. Mas se o samba é uma forma de oração, é também forma de criar outras formas. “7º dia”, novo single do paraense radicado em Santa Catarina jean mafra, e o primeiro de sua parceria com a CALOOR record, selo do Nordeste proposto a divulgar o pop tropical brasileiro, nos traz uma dessas formas. Um contraste entre o ritmo contagiante da percussão excepcional de Alexandre Damaria e a melancolia da letra e da melodia, mesclado a texturas dos anos 80 dos synths de Binho Manenti. Essa mistura, algo entre alegria, melancolia e nostalgia, traz a possibilidade do novo. Uma introdução percussiva pontuada pelo violão de Luis Canela, que assina a composição com Mafra, se abre a uma bela sobreposição de vozes acompanhadas pela acentuação do ritmo e da harmonia. E então entra o sujeito da canção e, com ele, a possibilidade de estranhamento que um ouvinte desavisado pode ter.
O 7º dia, que intitula a canção, e que, na letra, parece nunca chegar, geralmente remete ao dia do descanso e da celebração. No Brasil, remete ainda a uma tradição cristã herdada da colonização, a missa do 7º dia, que celebra, sete dias depois da morte, o prometido descanso eterno posterior ao tempo de purgação da alma. Justamente os seis dias em que o sujeito da canção canta o estado de devastação de seu corpo e de sua psique, provocado pela opressão, pela tortura ou pela escravidão: “seis dias estive amarrado / ao tronco de uma mangueira”, “seis dias de sol escaldante / nas mãos atadas, coceira”, “seis dias de sede e fome” etc.
Talvez não seja tudo que possa ser tomado como alegoria, mas tudo se presta a ela. O prometido descanso viria com a morte? Afinal, “depois de seis dias o escalpo e a cruz”, canta o sujeito. Mas morte de quem? Do senhor ou do escravo? Do opressor ou do oprimido? Ou, antes, os polos opostos estariam indissociados no sujeito que, assujeitado, parece optar deliberadamente por permanecer na condição de subordinação? O verso “eu, vítima e eu também carrasco” parece o confirmar, sobretudo se considerarmos o consentimento do sujeito: “depois de seis dias, tranquilo / entendo e aceito o enredo”. Se focarmos no ritmo dos acontecimentos, veremos seis dias atravessados por torturas e pela degradação da humanidade do sujeito, e o paradoxo de sua condição, pois tudo indica que as ações e as opções do sujeito da canção o levaram a sua situação.
Mas quem seria de fato o sujeito da canção? Se pensarmos no momento pelo qual passa o Brasil — embora Mafra informe ter escrito a letra em 1998 — podemos nos colocar na carne desse sujeito, que se revela um retrato do esfacelamento moral e institucional do Brasil atual. Na carne desse corpo-país e suas opções apressadas e desastrosas dos anos mais recentes. Corpo que ainda passa e repassa masoquistamente seus seis dias de tortura, carrasco de si mesmo, como humanidade e projeto de nação: “nem ódio ou amor, nenhum medo / depois de seis dias, tranquilo / entendo e aceito o enredo”. Esperando o 7º dia que provavelmente nunca vai chegar, pois “depois de seis dias o escalpo e a cruz” é o que nos resta. Ou a canção nos informa que nela e na arte reside a clave de escape possível — sem engajamento compulsório — quando os tempos turvam e a realidade (conjunto de tantas escolhas equivocadas) coloca esse corpo-nação “seis dias sendo vigiado / de perto pelos urubus”?
Foto: Ana Carina Baron
*Juniores Rodrigues é músico (ex-Vomitorama), professor de Língua Portuguesa e Literatura e mestrando em Literatura na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina)
*Tiago Hermano Breunig é professor de Literatura do Departamento de Letras da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) e ex-guitarrista da banda Eletrolíticos
[…] Mafra é músico, dj e pesquisador, lançou há pouco “7º dia”, disponível em todas as […]
emocionado aqui, daniel silva, com o texto, com o momento, com junção de tanta gente que respeito admiro e que se juntou a mim e a essa canção. OBRIGADO.