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Ashtoreth traz o universo mítico da Ilha ao metal extremo*

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*por Cristiano dos Passos

A despeito de sua posição periférica no país, Santa Catarina tem uma cena pesada atuante, com bandas marcantes em todas as vertentes da música extrema, ainda que o reconhecimento da sua relevância esteja restrito ao underground e muita gente as desconheça. Acostumadas a correr por fora e a se virar com seus próprios recursos, as bandas locais são resistentes, como prova o Ashtoreth com seu álbum de estreia, o instigante “Bruxólico”, lançado em 2022 e gravado em plena pandemia.

A prova da resistência está, em primeiro lugar, na formação do grupo, já que seus integrantes são todos veteranos da cena de Florianópolis e São José. Na bateria, Opium (ex-Darkness – semente do que viria a ser a Khrophus – e Debauchery); na guitarra, Cerviciam (ex-Stomachs e Skombrus); no baixo, Veneficum (ex-Necrobutcher, SRMP, entre outros projetos); e no vocal, Meimendo Negro (ex-Caibalion, Osculum Obscenum e Antichrist Hooligans). Aproveitando o vácuo da pandemia, essas lendas da música local se uniram para celebrar as lendas da cidade por meio de uma linguagem pesada, obscura e muito singular, aliando suas velhas influências a uma concepção artística mais sofisticada, como se pode ver pelo material apresentado, já que, além do CD com as letras (muito bem elaboradas, diga-se!), traz também um livreto repleto de ilustrações que busca contextualizar o ouvinte no universo estético proposto pela banda.

O título do disco remete diretamente à cultura açoriana, o que por si só já é um ponto singular na concepção do material. Afinal de contas, o metal extremo parece, aos olhos e ouvidos dos seus detratores, um gênero “duro” e pouco afeito a experimentações com linguagens regionais, algo que o black metal já provou não ser verdadeiro desde que o Bathory passou a ornar suas músicas com elementos da cultura viking. O que é singular no caso do Ashtoreth é a conexão com a cultura mística local, especialmente as antigas lendas de bruxas e monstros que povoavam o imaginário da Ilha de Santa Catarina, levando a banda a incluir em seu material referências explícitas à obra de Franklin Cascaes, antropólogo, folclorista e escritor nascido em Florianópolis.

Porém, isso não faz do Ashtoreth uma banda de folk metal, pois essa ligação com a cultura nativa está restrita ao aspecto lírico, e não com a musicalidade em si. Nesse aspecto, a banda é ainda mais singular, ao incluir em sua música elementos sonoros de outras culturas, emprestando um ar mais universal a algo que, a princípio, carrega uma aura local. Dessa forma, instrumentos de origem oriental também foram utilizados, principalmente na percussão, trazendo uma atmosfera ritualística e quase tribal em alguns momentos, sem contar o uso – muito bem pensado, aliás – de diversos efeitos sonoros, os quais contribuem para aprofundar a viagem do ouvinte ao universo obscuro proposto pela banda. Boa parte desses efeitos remetem à natureza – ventos, tempestades, trovões, oceanos – que surge no álbum como uma espécie de divindade, conectando os povos ancestrais pagãos e suas cosmogonias com a concepção de mundo do Ashtoreth, voltada à celebração do feminino e da Mãe Terra. É essa ligação com a terra e o feminino, por sua vez, que faz a ponte entre a banda e as histórias de bruxas da Ilha, as quais são temperadas com altas doses de magia e misticismo, temas caros à música extrema.

Nesse sentido, assentada nessas bases líricas e sonoras, a música que o Ashtoreth produz pode ser classificada como doom metal numa primeira audição, mas o ouvinte atento encontrará em “Bruxólico” muito mais do que isso, ainda que a principal característica do doom tenha sido preservada, qual seja, o peso extremo aliado a andamentos arrastados e fúnebres. Há, contudo, elementos do black metal, cuja presença pode ser notada no tom áspero e malévolo das vozes, do occult rock setentista, principalmente no som das cordas, repletas de wah-wahs e reverbs, bem como de tendências mais contemporâneas da música, como dark ambient e industrial nas partes mais atmosféricas, tudo isso embalado por um chapante clima de psicodelia e liberdade criativa.

Assim, o disco começa com uma introdução chamada “Convenção das Bruxas do Pântano do Sul”, com participação de Indra Rosa e que conta com mais de cinco minutos, algo raro para uma intro, mas que aqui combinou perfeitamente para dar início à viagem rumo aos confins da mata nativa numa noite de lua cheia e mergulhar num verdadeiro culto pagão às divindades da natureza. Sobre um ruído constante em que se misturam ventos e sons do mar, surgem vozes fantasmagóricas, um coro cerimonial macabro e uma percussão hipnótica, que conduzem o ouvinte até “Lua Errante”, música mais conhecida de “Bruxólico”, por ter sido lançada como single alguns meses antes do álbum e ter inclusive um clipe disponível no Youtube, produzido pela própria banda. A letra busca retratar um ritual noturno no qual as bruxas se encontram sob a luz da lua em uma “festa profana e impura” da qual o “peregrino Astro Noturno” é testemunha única, num cenário que funde os elementos da natureza com os desejos libertinos das amantes de Lúcifer.

Na sequência, contando com a participação do multi-instrumentista cabo-verdiano Jeff Nefferkturu, vem a música mais longa do disco, a excelente “Serpente nos Cabelos”. Em seus quase 13 minutos de duração, a faixa traz tudo aquilo que o Ashtoreth pretende mostrar com seu trabalho de uma só vez. Iniciando com uma atmosfera soturna e com vozes macabras a declamar os versos, a faixa logo adentra no clima doom metal, com riffs excelentes, de peso mastodôntico e uma guitarra solo dramática. Nos últimos quatro minutos, alternam-se dedilhados de guitarra, efeitos diversos e mais uma parte arrastada, que inicia com um baixo distorcido e segue até o fim com um riff de dar inveja a qualquer banda que cultue a senda aberta por Black Sabbath, Coven, Jacula, Pagan Altar, entre outros mestres da música macabra. Vale destacar aqui a versatilidade vocal de Meimendo Negro, que passa pelo gutural, pela voz declamada e até mesmo pelos sussurros, mostrando muito mais do que em seus antigos trabalhos com Osculum Obscenum e Antichrist Hooligans, nos quais predominavam os timbres rasgados e mais agudos.

“Majestade Caída/Visão” é um dos pontos altos do disco, pois apresenta a tradução de dois poemas de Cruz e Sousa, grande nome da literatura simbolista, transformados em uma única canção de atmosfera lúgubre e satânica. Se os poemas, em sua origem, sugeriam algo macabro, certamente a banda conseguiu amplificar esse aspecto tenebroso por meio dos recursos que a música oferece, causando no ouvinte um impacto mais poderoso do que os textos originais. Além da escolha de um poeta nascido em SC (Desterro, 1861), a opção por uma estratégia de tradução intersemiótica confere a este lançamento uma riqueza estética acima da média, algo que sem dúvida merece uma análise bem mais profunda do que esta humilde resenha pode oferecer…

As duas últimas faixas do CD são coerentes e mantêm a consistência deste trabalho em alto nível. A primeira, “O Menestrel e o Oceano”, segue a linha pesada e distorcida de “Lua Errante”, apresentando também melodias melancólicas nas linhas de guitarra e vozes variadas ao longo de seus sete minutos, enquanto a última música, “O Retorno de Lúcifer”, inicia com uma massa sonora pesadíssima e um primoroso trabalho de bateria e guitarra/baixo. Interessante notar que o andamento hipnótico e batidas repetitivas dessa última música fazem o Ashtoreth soar mais como uma banda experimental ou industrial do que como uma banda de metal mais comum, o que, aliás, é o que a torna tão atraente e singular no cenário local e nacional.

A princípio, resta esperar pela continuação deste álbum, já que a promessa da banda é lançar ainda mais dois discos para fechar um trilogia temática. De qualquer forma, dada a riqueza estética deste material, “Bruxólico” já vale muito por si só e certamente pode ser enquadrado como um dos lançamentos metálicos mais inteligentes e consistentes da cena pesada de Santa Catarina em toda a sua história. Espero que, em breve, o Ashtoreth esteja preparado para transformar o universo mítico da região em metal extremo de qualidade e inscrever a cultural local na cena underground mundial.

*Cristiano dos Passos é pesquisador de música extrema, doutorando em Estudos da Tradução (UFSC), ouve de new age ao noise e atua como baterista no brega (DBregas) e no grindcore (Sengaya).

Daniel Silva é jornalista e editor do portal Rifferama, site criado em 2013 para documentar a produção musical de Santa Catarina. Já atuou na área cultural na administração pública, em assessoria de comunicação para bandas/artistas e festivais, na produção de eventos e cobriu shows nacionais e internacionais como repórter de jornal.

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