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Bicho acuado, grito de alerta, Renata Swoboda e Agnaldo*

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*por Jean Mafra

a voz de renata swoboda é rouca, desesperada, triste, algo que me lembra o canto de um animal exausto, acuado. há uma certa dor em seu timbre, mas o bicho que a cantora esconde na garganta é arisco e não se deixa ver facilmente. para a nossa infelicidade, aliás. por mais talento que tenha, ela e sua voz, parecem inconstantes. assim lhe percebo em “pandemusic (live)”. trabalho gravado em casa e custeado parcialmente por um edital da secretaria de cultura, turismo, esporte, nhéco-nhéco e blá-blá-blá do governo faSCista de nosso rincão.

o álbum, o primeiro dela no mundo, tem colaboração de rafael pfleger, produtor que de uns tempos para cá vem se firmando como queridinho da cena roqueira de florianópolis. talvez ele tenha contribuído para dar um pouco mais foco de a compositora, talvez não. renata é incontrolável, geminiana, dispersa e talentosa e isso fica evidente ao longo das faixas. minha preferida, “muito mais longe”, é retrato de nossas dores de uns tempos para cá.

enquanto pensava sobre o disco, enquanto lhe ouvia e tentava reunir tempo em meio ao caos interno/externo, soube da morte de um amigo de daniel silva (o responsável por esse site e pelo convite para a feitura do texto). mais um brasileiro vítima da pandemia/genocídio, tudo junto/misturado. um entre mais de 330 mil (isso levando em conta apenas os números oficiais). enquanto daniel e outros choravam, a covid levava agnaldo timóteo. cantor de voz imensa, de espírito fugidio e de contradições: gay, negro e conservador. as notícias terríveis se sucedem diariamente enquanto tento escrever, organizar postagens para minhas redes, limpar o banheiro, guardar brinquedos espalhados pelo chão, dentre outras coisas, e eis que me vem a memória “grito de alerta”…

lançada por maria bethânia em fins dos anos setenta, a canção de gonzaguinha seria cantada por boa parte do país. sem ser explícita, num contexto de censura e repressão, sua letra conta a história da relação entre agnaldo e um rapaz mais jovem. no canto empostado dele, subentendidos permanecem à espreita, prontos pro bote (tal qual animal selvagem), revelando apenas o possível. quando ouvimos “são tantas coisinhas miúdas / roendo-comendo-arrasando aos poucos com o nosso ideal / são frases perdidas no mundo de gritos e gestos / num jogo de culpa que faz tanto mal”, podemos dizer que alguém está falando de amor por entredentes, se revelando como dá. entretanto, poderia ser sobre brasil, claro. um país religioso, de uma gente temente a deus e a violência do estado.

renata canta “um dia tu vai perceber / que essa vontade de bater asas (…) / essa vontade de virar as taças / essa louca vontade de meter a louca e amar pra valer” como quem manda recado e convida ao entregar-se, mas poderia ser outra coisa: poderia estar dizendo que a gente talvez precise dar um basta aos que nos tentam matar ou ir embora de uma vez antes que sejamos nós os exterminados. se a lemos dessa maneira, seu canto ganha mais potência: não esqueçamos que ela é mulher e gay num país em que ser assim é estar em perigo permanente. afinal, dos anos setenta pra cá, muito mudou, mas tudo permanece igualmente atroz.

“pandemusic (live)” é um retrato cheio de erros, mas com bonitos acertos, como a parceria com a mc versa em “alguma coisa acontece” e a já citada “muito mais longe”. no mais, a música e a voz cantora seguem sendo como o animal ferido/acuado/exausto que vamos nos tornando enquanto notícias terríveis seguem diariamente nos chegando.

*Jean Mafra é músico, dj e pesquisador, lançou há pouco “7º dia”, disponível em todas as plataformas

Foto: Felipe Maciel Martinez

Daniel Silva é jornalista e editor do portal Rifferama, site criado em 2013 para documentar a produção musical de Santa Catarina. Já atuou na área cultural na administração pública, em assessoria de comunicação para bandas/artistas e festivais, na produção de eventos e cobriu shows nacionais e internacionais como repórter de jornal.

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