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Há um blues no fim do túnel ou: uma aula de esperança*

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*por Diogo Araujo

Os que como eu estiveram no show de lançamento do álbum “Há um blues no fim do túnel”, de Marcoliva e Cláudio Schuster, realizado em 5 de novembro de 2022 no TAC (Teatro Álvaro de Carvalho), em Florianópolis, já atestaram a grandeza da produção deste projeto como um todo. Ali era como se estivéssemos no espetáculo de um nome de projeção nacional, sendo realizado pra virar vídeo. A qualidade das canções e dos poemas, a capacidade e o fio da banda, o preparo do cenário, as participações especiais, o roteiro… Tudo tinha o ar de um grande e único momento das carreiras de artistas maduros e realizados.

O mesmo se dá com o álbum que agora temos ao alcance dos ouvidos. Tal como no show, o disco é composto por canções de Marcoliva com letras de Cláudio Schuster – sendo que no TAC o poeta também esteve no palco lendo vários de seus versos. Ambos artistas têm uma carreira que podemos considerar longeva, cada um com mais de cinco álbuns/livros nas áreas aqui performadas, música e poesia, em mais de três décadas de lançamentos de seus esforços artísticos. O time de suporte, a começar pelos músicos, têm igual sabedoria, reafirmando a tese que abre este texto: é uma aula de realização artística para catarinenses e brasileiros.

Um dos grandes responsáveis por essa construção é, acredito e defendo, o talento de um grande diplomata da arte catarinense que é Marcoliva. Os seus voos solo começaram recentemente (anteriormente o músico tendo feito vários trabalhos ao lado da cantora Tatiana Cobbett), mas seu conhecimento de como funcionam as estruturas sociais somado a seu amor às artes já vêm de longe. Imagine um sujeito workaholic com um sofisticado trato para com as pessoas da cultura, também sempre alegre e firme, no humor certo para ouvir e valorizar o trabalho de colegas.

No desempenho de sua arte em si, temos nova surpresa da qualidade do artista. Encarnando com talento e audácia os expedientes de sua arte, Marcoliva performa a canção a fundo, em suas múltiplas faces. Seu talento dramático e sua consciência metalinguística (bem como algo de sua linguagem corporal) me lembram Tom Zé, mas não se trata de encerrar o artista nesta figura de comparação. Os arranjos do disco em resenha, por exemplo, são um capítulo à parte, pois estão a cargo do grande baixista e jazzista Rafael Calegari. A concepção do projeto sonoro, portanto, é menos da anarquia que da precisão.

Aquilo para que eu chamava atenção, no entanto, era para uma constante menção a algo fora das canções que sinto no trabalho deste músico. É a marca da inteligência, do humor e do teatro, que compõem essa persona artística. Aqui, o fora já está nos poemas de Cláudio, um trânsito entre duas artes que se faz com medida e profissionalismo. Mas há algo de performático também no próprio corpo de canções como “Elefantes tocam blues”, “Foda”, “Tango Milonga Blues” e “Sem cabimento”, faixas nas quais os que conhecemos o trabalho do músico, quase o podemos ver colocando fogo no palco e no parquinho.

Este humor mais “superlativo”, poderíamos dizer, no entanto, não é o único presente aqui. Canções como “Aguardente”, “Leve” e “Solidão” são de saída contemplativas e, da leitura de seus versos como poemas, podemos enxergar um excelente encontro com a espontaneidade e assertividade de suas melodias. Um exemplo disso está na primeira destas canções citadas, a bela “Aguardente”. Da inicial repetição de seu mote central, “Como vive um vivente a beber como água a aguardente do amor/Cambaleantes dançam nas calçadas as verdades do amor”, vemos a música crescer num discurso longo para uma canção e carregado de imagens cheias de musicalidade, como nestes versos:

Embriagado, cambaleante
Escrevo torto e atordoadamente
A dúvida é para os sóbrios
Para os sábios lábios ardentes
(…)
Que o amor, bebendo
Teimando
Infinita
E aguardentemente
Em embriagar verdades
E rimar agente

A junção de imaginários, assinalada pelas letras, dificilmente não está presente em um trabalho contemporâneo. No presente álbum, aparece de saída o blues, que segue ativo, para ao fim se misturar, mencionando temática e/ou musicalmente, a milonga e o tango. Dando o tom a esse encontro, a linguagem da moderna música brasileira se faz presente ali. É de “Solidão” meus versos preferidos com seu refrão “Solidão/ tão pampa ser/ quanto sertão”. Aqui, a manifestação sulista de certo choque contra o imaginário tradicional do Brasil (o sertão vs a “estética do frio”) quer ser tão e é tão quanto quaisquer rotas prontas e viciadas.

Escrevo sobre música e acompanho, às vezes bem de perto, o trabalho de amigos músicos há perto de 20 anos e uma dicotomia muito presente na cena dessa arte é a existente entre instrumentistas, os quais vão valorizar a técnica de maneira inegociável (custa passar, em seus juízos, na prova do “tocar bem”), e performers, que procuram encarnar e dramatizar as canções, chamando a atenção para o corpo, os conceitos que se somam e os juízos que vão procurar a implicação de outras artes (é preciso o gesto, político, de o artista se colocar como cidadão no mundo, argumentam). A rixa é braba, brabíssima. Os performers são acusados de acreditar num “nasci pronto”, um mito de ser artista sem precisar estudar, constantemente, técnica, que desprezaria a formação vinda do aprofundamento em linguagens do gênero. Mas os instrumentistas, tão prontos a provar matematicamente que dominam os aspectos matemáticos da música, não ficam livres: são acusados de alienação na técnica, uma espécie de timidez em saírem do estereótipo de artista que cria quadros para uma contemplação algo neutra. Os primeiros querem incluir a destruição e a recriação na arte; os segundos clamam por um senso histórico, de atenção desenvolvimento de longas e ricas tradições, para cada elemento musical.

Marcoliva é de origem um performer, um menestrel que destila o acaso e a delícia da palavra cantada através da música. Mas aqui se une a Schuster e Calegari, o que coloca “Há um blues no fim do túnel” numa zona limítrofe, e muito interessante, entre os estereótipos acima citados. Não que as imagens de suas composições musicais não sejam ricas, suas melodias acertando muito bem no casamento com a métrica dos poemas. Mas estes versos e o trabalho de concepção musical realçam a inteligência técnica da obra.

Existe um outro mito/problema referente a todas as artes que este trabalho supera com folga: é o do “eu e meus amigos vamos fazer”. Um estereótipo algo burguês de preguiça de sair de casa, misturado a insegurança em lidar com as estruturas que apoiam a cultura, mas sobretudo da dificuldade de fazer arte em nosso país. Procurar profissionais referência em suas cidades para cada aspecto de um trabalho, bem como formas de apoio institucionais que o realizem na cidade e para a cidade, é um caminho longo… Mas que aqui se torna perto. A equipe por trás do álbum de Marcoliva e Cláudio Schuster é grande. O pressuposto parece ser um: vamos dialogar com o máximo de artistas da nossa cidade e realizar algo como os adultos que somos. Eis aí uma grande conquista. O resultado da obra em questão transpira o chão a partir do qual se ergueu: um apoio que sela confiança e sabedoria e que se faz presente sobretudo no brilho musical dessas canções.

Foto: Guto Campos

*Diogo Araujo é florianopolitano, escritor e doutorando em literatura pela UFSC. Escreve e publica sobre música há 20 anos, tendo feito seu mestrado sobre o tropicalismo. Formado em filosofia pela mesma instituição citada acima, sua verdadeira paixão é a literatura, mas sua amante, a música.

Daniel Silva é jornalista e editor do portal Rifferama, site criado em 2013 para documentar a produção musical de Santa Catarina. Já atuou na área cultural na administração pública, em assessoria de comunicação para bandas/artistas e festivais, na produção de eventos e cobriu shows nacionais e internacionais como repórter de jornal.

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