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“Pest’Ology” do Somberland é um marco para o black metal nacional*

*por Pedro Bermond Valls

O Somberland é um quarteto de black metal de Criciúma, com trajetória recente, lançaram uma demo em 2016 e o LP em questão, “Pest’Ology”, em novembro de 2017. Diavolus e Dmortest trabalham as guitarras, E. Nargoth o baixo e os vocais, na bateria seu amigo de longa data W.A.G. Estão atualmente assinados com o selo paulista Heavy Metal Rock.

O álbum dá largada com a faixa-título, “Pest’Ology”. Um trio de acordes menores tocados em tremolo ressoam ao fundo até que a bateria prepara sua entrada com blast beats. Define-se aqui o tom da obra, uma sonoridade bastante recorrente no black metal. A faixa é construída neste formato clássico do estilo, misturado com riffs técnicos, de notas em staccato e harmônicos artificiais, que remetem a um thrash dissonante e frenético, muito parecido com ideias presentes nos primeiros CDs do Slayer.

É possível captar também intenções mais melódicas, baseadas em escalas convencionais, uma pitada de melodeath. Essa tríade de influências vai estar presente durante todo o trabalho, que mesmo com o trânsito entre escolas do metal e com a produção limpa, não deixa de ter fidelidade à estética black metal – crua, desoladora e atmosférica. Os vocais, provavelmente a performance mais impressionante do disco, contribuem imensamente para a manutenção desses status “true” no álbum, algo que a comunidade do black costuma valorizar muito. Eles soam agonizantes e animalescos, repulsivos como um orc tolkiano ou um corvo engasgando com carcaça, além de intensos, não perdendo pressão e agressividade em nenhum momento. (Não deixo de ser fã de vocais inconstantes e sem técnica no estilo, acho um encaixe adequado, como no álbum “Panzerfaust” do Darkthrone)

A segunda música “Here Has No Place For God” segue uma fórmula parecida. Duas passagens parecidas com uma ponte e um refrão, cercadas de riffs diversos, caminhos e descaminhos instrumentais. Um elemento novo é adicionado ao pacote e ele agrega bastante ao conjunto: backing vocals guturais. Algo muito raro de se ouvir em um álbum de black metal, eles vêm junto aos shrieks, catalisando o peso sonoro e significativo das frases.

Apontamentos negativos que já podem ser feitos nesse ponta da trajetória incluem: erros de sintaxe e gramática nas letras e o som do bumbo, tímido e estalado, deixando de contribuir para a dimensão grave da equação sonora. A bateria é muito bem tocada e é composta de uma maneira que distribui com dinâmica e inteligência os elementos passíveis de uso, como o blast beat, o pedal duplo, o encaixe das viradas e das conduções. No entanto, ela segue um clichê do gênero que são viradas e acompanhamentos quase sem utilização de pausas e ausentes de balanço ou suingue. Nada comprometedor, apenas um comentário.

“Fallen Angel” é a terceira faixa e certamente a minha favorita. O groove com hammer ons e a atmosfera de notas únicas da introdução é arrepiante, depois segue-se uma baixa de intensidade, com a linha de baixo exposta, só acompanhada de condução simples. Uma perfeita queda de pressão antes de um retorno brutal para o refrão e pós-refrão, que são absolutamente geniais. A maneira como a articulação vocal e as guitarras dançam entre si, juntas com “regurgitações” do pedal duplo, depois fluem placidamente para uma melodia de oitavas “epicamente triste” é hipnotizante. Elas crescem novamente, temperadas com os já mencionados backing vocals, sublimando-se juntas às declarações estridentes de “My Triumph”. A música trata muito provavelmente do mais famoso entre os anjos caídos da história do imaginário humano, e principal inspiração lírica da história do black metal, Lúcifer – e é o ponto mais alto de todo o álbum. Nada de tecnicamente embasbacante, apenas composição inspirada. Uma das melhores músicas que já ouvi no estilo.

“Forever Dark Wood” começa com talvez o andamento mais rápido do trabalaho até o momento, blast beats e acordes ao fundo, uma progressão bastante heroica e marchante. Os riffs dessa faixa são bons mas menos memoráveis que os anteriores. Destacam-se aqui a primeira passagem “calma” da listagem e a progressão harmônica principal. “Dark Silence of Death” tem como riff principal uma jogada de palhetada entre cordas que soa bastante inovadora no contexto black metal, soa interessante e encaixa bem, como uma espécie de “Don’t Fear The Reaper” brutal. É a primeira música também onde surge uma passagem de guitarra solo. Eu não sou fã de solos nesse estilo, acho que ele prospera muita na projeção de imagens e de sentimentos, as dive bombs e as notas voando são muito capazes de retirar o ouvinte do “transe” característico do black metal.

Um tema muito recorrente no gênero é o despotismo e a autocracia, “Wrath of the Tyrant”, sexta na listagem, aparece completando essa casinha do bingo. A música começa com um ótimo riff, balançado, digno de se mexer o quadril, mas que não deixa de ser macabro. Seguimos então ao gancho, ponte e refrão, que seguem uma dinâmica bastante parecida com “Fallen Angel”, vocais e guitarras fluindo paralelos mas juntos em um construto coeso, mas, embora também muito cativante, não atinge o mesmo nível de qualidade da terceira faixa. O resto da estrutura da música segue com segmentos instrumentais soltos entremeando cada um dos ganchos, achei esses encadeamentos um tanto fracos. O riff da introdução volta na saída, ele junto com o gancho são suficientes para fazer desse um dos ápices.

Campos de batalha, mais uma casinha do bingo preenchida em “Into the Front”. A música começa com um dedilhado, a guitarra usando efeito, um phaser, flanger ou talvez outro pedal, não estou certo – ao fundo barulhos de tiros e explosões. Entra então a distorção, a música é de andamento absolutamente frenético, composta principalmente de acordes. A maneira como cada troca é encaixada dentro do fluxo rítmico da música é muito interessante. O Outro é destaque na faixa, lamentações bélicas fazem fundo a um riff repetitivo mas desconcertante (no bom sentido, que provavelmente só existe no metal) e a bateria toca aqui talvez o primeiro groove sem condução, só com tambores, do álbum. O resultado é proveitoso. Uma das melhores do CD.

“Sadistic Instincts Arise” é lenta e atmosférica, com vocais impositivos. Em termos de criatividade no uso dos interlúdios e mudanças repentinas de groove é um destaque do trabalho. “…When Future No Matter” fecha a obra com um quadro mais introspectivo e triste. Os arpejos introdutórios no baixo são destaque, abrem espaço para um riff arrastado e emocionante que se dilui novamente nos arpejos, dessa vez tocados pela guitarra. Voltamos para o primeiro riff, agora cantado, e a sonoridade é bastante melancólica, depois uma espécie de verso surge com slides sincopados de power chord, essa mesma ideia, resgatada do thrash, volta com uma intenção mais melódica um pouco mais a frente e a música termina com o riff principal e a volta do arpejo de baixo. Boa música, fraca para uma finaleira.

O álbum como um todo é bastante coerente e bem composto, mas acho que ficou com muito das suas melhores ideias concentradas na primeira metade. As letras são boas, as ideias e imagéticas provocadas pelas palavras são interessantes, no entanto, o Somberland peca na parte técnica da escrita, com erros gramaticais. Isso é algo bem comum no metal brasileiro, o melhor exemplo sendo as construções frasais toscas do Max Cavalera no Sepultura. Não é nada que diminua a grandeza dos gigantes do thrash ou do formidável Somberland.

Os finais abruptos em acordes não dissonantes, sem fade-out, diminuem um pouco a capacidade do álbum de gerar uma “aura” sonora, capacidade que, avaliando outros aspectos, é bem forte. As performances instrumentais são todas excelentes, o vocal é um dos melhores que já ouvi no black metal, quiçá o melhor. “Pest’Ology” é, ao meu ver, um dos melhores álbuns da história do metal catarinense.

Foto: Arlan Rodrigues

*Pedro Bermond Valls é músico e estudante de jornalismo na UFSC

Daniel Silva é jornalista e editor do portal Rifferama, site criado em 2013 para documentar a produção musical de Santa Catarina. Já atuou na área cultural na administração pública, em assessoria de comunicação para bandas/artistas e festivais, na produção de eventos e cobriu shows nacionais e internacionais como repórter de jornal.

Um comentário

  1. O texto de Pedro Bermond Valls, até para quem não entende nada de Black Metal, é tão instigante, descritivo e bem escrito que dá vontade de ouvir o album!

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